‘A Bonequinha Preta’ é um marco da literatura infantil brasileira

A primeira edição de A Bonequinha Preta ocorreu há mais de 80 anos. A obra já vendeu mais de 2 milhões de cópias, inspirou vários trabalhos escolares, peças de teatro, contações de histórias e povoa a memória de incontáveis adultos.

Além da cor, outras características da boneca são as suas duas tranças, a boca vermelha e os olhos arredondados. Lançado em 1938, esse foi o segundo livro infantil escrito por Alaíde Lisboa de Oliveira.

A estreia da autora na literatura direcionada para as crianças veio um pouco antes, com O Bonequinho Doce. Depois do sucesso do livro, Alaíde sentiu a necessidade de escrever A Bonequinha Preta.

Sobre a inspiração para o segundo livro, ela declarou: “Eu não aguentava ver só bonecas louras de olhos azuis. Queria criar uma boneca de cor negra.”

Uma negra, de quem Alaíde gostava muito, foi babá da autora quando criança. Segundo ela, o livro foi uma maneira inconsciente de homenagear aquela pessoa querida.

Apesar de a narrativa não possuir um grande referencial étnico-racial, o livro representa um marco nessa questão. Afinal, a personagem do título é “negra como carvão”.

A moral contida no livro

Como boa parte dos livros infantis, A Bonequinha Preta tem a intenção de formar valores. Para isso, Alaíde Lisboa levou em conta a psicologia das crianças e preferência que elas têm pela fantasia e pelo lúdico.

Assim, a história do livro se torna uma forma prazerosa de falar sobre situações sérias. Entre os temas abordados estão o amor, a amizade, o perdão, a solidariedade e a obediência aos mais velhos.

A Bonequinha Preta na janela clássico e novo.

Na história, a menina Mariazinha vai passear com a mãe e deixa sua Bonequinha Preta em casa. A criança recomenda à boneca que não brinque perto da janela.

Isso dá a entender que ela está reproduzindo recomendações semelhantes às que recebe de sua mãe quando é deixada em casa sozinha.

Depois, a Bonequinha Preta fica intrigada com uns miados que ouve e tenta espiar o gato do lado de fora da casa. Essa passagem reflete a curiosidade das crianças frente ao desconhecido.

Com isso, a Bonequinha Preta acaba caindo da janela.Isso indica o perigo de brincar perto de janelas e o que acontece com quem desobedece aos pais.

A Bonequinha Preta e a representatividade do negro

Uma das intenções de Alaíde Lisboa de Oliveira ao escrever A Bonequinha Preta era mudar a concepção sobre personagens de literatura infantil.

“Uma das minhas felicidades é saber que isto ajudou a combater preconceitos raciais. Tenho muito orgulho de saber que crianças negras se identificaram com a personagem e se encontraram em sua leitura”, disse a autora.

Lembre-se de que estamos falando de uma obra lançada na década de 1930. Na época, as questões raciais ainda engatinhavam. Por isso, a história não contém um convite explícito a discussões sobre temas densos, como racismo ou injúria racial.

Mesmo assim, o livro é pioneiro e indispensável para quem quer se aprofundar na história do negro brasileiro.

A protagonista não é uma criança negra, mas sim uma boneca. A Bonequinha Preta é um objeto pelo qual Mariazinha, a criança (branca) da história, sente afeição e cuida como se fosse sua filha.

Embora a cor da boneca não influencie na narrativa, a obra contribuiu para a discussão do tema da representação de crianças negras. Isso era algo inédito nos livros infantis daqueles tempos.

Para que você tenha ideia do tamanho da barreira que o livro transpôs, só se abordou o tema novamente em uma obra relevante em 1986. Estamos falando de Menina bonita do laço de fita, de Ana Maria Machado.

Na verdade, A Bonequinha Preta também ganhou uma visibilidade maior na década de 1980. Nessa época, a abertura política permitiu a participação de diferentes segmentos sociais nos destinos do país.

Com isso, percebeu-se uma ausência de obras capazes de oferecer às crianças negras um referencial positivo de identidade.

As sucessivas versões de A Bonequinha Preta

Desde a primeira edição, A Bonequinha Preta tem encantado crianças de várias gerações, confira aqui! De lá para cá, o livro passou por algumas mudanças gráficas.

O artista Monsan, que possuía o estilo próprio da época, desenhou a Bonequinha Preta original. Por isso, podemos considerar que Alaíde Lisboa de Oliveira é a mãe da Bonequinha Preta e Monsan é seu pai.

Em 1982, foi necessário fazer uma adequação gráfica, para tornar o livro mais atraente. Assim, as crianças passaram a conhecer a obra com o estilo marcante da ilustradora Ana Raquel, naquela época, uma iniciante.

A artista, por sua vez, conheceu o livro quando ainda estava aprendendo a ler. Mais tarde, ela iria re-ilustrar e, assim, se considerar “tia” da Bonequinha Preta.

Quando Ana Raquel desenhou o livro, o texto também havia passado por adequações. Além de diferenças gramaticais, alguns trechos precisaram de mudanças mínimas, para que não causassem interpretações equivocadas.

Livro clássico A Bonequinha Preta em destaque e edições recentes ao fundo.

No entanto, o sentimento transmitido ao leitor nunca sofreu alteração.Assim, o livro com arte e texto originais virou item de colecionador.

A nostalgia fez com que em 2013 fosse feita uma edição fac-símile. Quando A Bonequinha Preta completou 75 anos, foi lançada uma reprodução do livro original de 1938, com o mesmo tipo de papel e tudo mais!

A versão mais fácil de encontrar atualmente foi concebida em 2004, para comemorar o centenário de Alaíde Lisboa, que ainda era viva naquela época.

Nessa edição, as ilustrações também são de Ana Raquel, que usou como base a sua arte de 1982. A artista usou uma caneta digital e um software próprio para recriar por cima de seu próprio desenho.O resultado é deslumbrante!

“Quem dera nossos refazeres sempre dessem tanto prazer”, disse Ana Raquel. A versão atual ainda conta com recortes do arquivo pessoal de Alaíde Lisboa de Oliveira. Confira!